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Os limites lógicos e ontológicos da "apropriação cultural"

  • Egon Ralf Souza Vidal
  • 23 de ago. de 2017
  • 6 min de leitura

Jornal A Região (adaptado)

18 de fevereiro de 2017

Das concepções de Lev Semmenovitch Vygotsky para o estudo da psicologia humana, talvez não se pudesse imaginar que uma hipótese teórica, de pretensão científica, viesse a ser colocada como pano de fundo às atividades discriminatórias que vêm se apresentando no âmbito social. A chamada “apropriação cultural” – definida por Vygotsky como o processo de internalização de relações, símbolos e signos sociais e históricos, que ocorre no enlace de interações humanas com o espaço sociocultural – tem deliberadamente fundamentado a dinâmica dos discursos discriminatórios e odiosos de grupos radicais e extremistas de supremacia racial. Dois casos de acusação de apropriação cultural popularizaram-se na internet recentemente. Um deles teve como personagem uma mulher (branca) que utilizava turbante, e, por esta razão, foi questionada por outra mulher (negra) acerca do porquê de estar utilizando um acessório que, segundo informou, não era oriundo de sua cultura, mas, sim, típico das culturas de origem africana. A mulher com turbante respondeu que usava aquele acessório como forma de cobrir a sua falta de cabelo – causada devido ao tratamento oncológico que fazia. O outro caso trouxe como personagem principal a cantora Anitta, que foi acusada por grupos autodeclarados negros de apropriação cultural pelo fato de estar utilizando tranças em seu cabelo. Ambos os eventos alavancaram inúmeras discussões na internet. Todavia, nenhum entendimento razoável ou coerente foi obtido, o que torna necessário prosseguir com esta discussão, contudo, em uma pauta muito mais analítica, histórica e conceitual do que, propriamente, opinativa ou ortodoxa.

Apropriação cultural é um conceito desenvolvido em meio aos ensaios epistemológicos de Lev Semmenovitch Vygotsky, na Rússia. O clima intelectual vigente na Rússia pré-revolucionária e revolucionária fez emergir todo o pressuposto necessário à efetivação da política socialista naquele país, mas, não restringiu-se a isto: as discussões no âmbito científico que objetivaram efetuar a compreensão do processo de evolução e desenvolvimento humano adotou como fundamento lógico-argumentativo o materialismo histórico dialético, ou seja, o fundamento básico do marxismo. Este conceito surge, então, por influência dos conceitos de trabalho, processo de produção, valores de uso e mais-valia, desenvolvidos por Karl Marx* e Friedrich Engels** ao longo de seus estudos. Para estes autores, o produto deve ser propriedade do seu produtor, seja ele um grupo ou uma única pessoa, para que se evite a dominação sobreposta de classes*** ou a apropriação indevida de bens, meios e/ou recursos. Assim, no substrato argumentativo da apropriação cultural tem-se o ideário político-social marxista, e, na sua práxis, há o estímulo à restrição e reivindicação de grupos culturais radicais para que o usufruto de determinados instrumentos, elementos ou produtos culturais seja privativo e específico de cada cultura, inibindo, coagindo e constrangendo todo aquele que ultrapasse as fronteiras das “especificidades” culturais.

Tomando como pressuposto a hipótese de Vygotsky, é razoável considerar que nos “apropriamos”, de fato, dos elementos que permeiam a cultura e a história dispostos à nossa volta, por meio de nossas relações sociais que interpõem-se ao processo de aprendizagem que se inicia desde o útero materno. Este é, contudo, um estado de composição natural de aprendizagem humana; um sub-processo do fenômeno da aprendizagem. As implicações e ressalvas que se possa fazer acerca deste conceito, desse modo, giram estritamente entorno deste eixo: o eixo da aprendizagem. Por outro lado, quando analisamos em outras pautas o tema apropriação cultural, a ideia de uma estrita propriedade dos elementos sócio-histórico-culturais revela-se, sobretudo, como fajuta, incoerente e inconsistente com a realidade. Analisemos, portanto, esta questão.

Sempre que considerarmos todas as implicações à formação da personalidade humana, a acusação de apropriação cultural será logicamente impossível. Ora, o processo de formação da personalidade não pode ser genuinamente estrita à singularidade de uma única pessoa sem se levar em consideração as suas interações pregressas, mediatas ou imediatas; tampouco seria à singularidade de um grupo, pois isto feriria o próprio princípio básico da apropriação cultural, conforme proposto por Vygotsky e, portanto, demarcaria uma auto-contradição na justificativa básica desta tese. Se tomarmos como exemplo uma cultura longínqua e isolada do restante da população, este grupo, por mais remoto que fosse histórica e geograficamente de outras culturas, ainda assim preservaria traços elementares e comuns com a natureza universal da espécie. Sendo assim, toda cultura e os seus reflexos simbólico-instrumentais estão, inicialmente, submissos ao princípio de identidade da espécie humana, que é necessariamente lógico e universalmente válido, e, portanto, subordinados à essência irrevogável e comum, impossível de ser transposta por meio da ação impositiva da própria espécie ou mediante os adendos que desvelam-se úteis, ou mesmo, simplesmente tradicionais às culturas. Isto impossibilitaria, desse modo, a reivindicação de uma suposta autoridade e domínio sobre os elementos produzidos momentaneamente em uma determinada cultura, uma vez que tais elementos, mesmo aqueles que serviram a um propósito específico em um período histórico, são manifestações singulares da totalidade simbólica que compõe a natureza essencial da espécie humana, sendo também, por este motivo, pertencente a todos.

Do ponto de vista ontológico, acusações de apropriação cultural por parte de quaisquer grupos étnicos são igualmente impossíveis. Desde as expansões marítimas, as revoluções industriais e o processo de globalização dos meios de informação, produção e consumo, cada vez mais as etnias se mesclam e misturam-se entre si, com os diversos elementos culturais simbólico-instrumentais de outras civilizações e sociedades contemporâneas ou de outrora, a ponto de a reivindicação de originalidade se restringir à mera história, mas, não, ao seu uso.

Do mesmo modo, qualquer implicação à imposição de legitimidade de uso de objetos culturais deve levar em conta o pressuposto básico de que o meio linguístico por meio do qual se efetiva a “denúncia” já é, em si, o resultado de uma apropriação histórico-cultural, o que impossibilita uma denúncia ou uma acusação coerente e apodítica. Ora, pode-se identificar isto manifestado desde grupos indígenas – que são favoráveis à adoção de tecnologias que favoreçam a preservação e o convívio sadio de sua cultura com outros grupos sociais – até o simples sujeito, isolado em seu quarto, ouvindo Rock, Pop, ou Reggae em seu aparelho eletrônico – origem estrangeira –, enquanto come tapioca – um alimento de origem indígena.

Considerando também que o mérito de qualquer invenção ou produção histórica seja a sua capacidade científica de universalização, ou seja, de aplicação e uso nos mais variados domínios geográficos e nas diferentes culturas, testemunha-se, mais uma vez, a incorreção e a impraticabilidade desses argumentos. Ilustra-se isto retomando o exemplo das moças negras que criticavam a menina de turbante: ora, elas trafegavam em um metrô, que é uma invenção de origem anglo-saxônica. Provavelmente, também utilizavam um smartphone, que teve o seu primeiro protótipo produzido pelo grego Theodore G. Paraskevakos. Não bastasse isto, também falavam a língua portuguesa, de origem latina. Este exemplo irá se aplicar para tantas e quais ocasiões se enunciarem e se evidenciará, em todas elas, a impossibilidade lógica e ontológica de qualquer acusações de apropriação cultural.

Note-se ainda que a apropriação cultural não poderia ser um mecanismo simbólico para demarcar uma “luta entre dominados e dominadores”, exatamente pela incoerência que recorre desde a hipótese lógica até a prática ontológica desta tese. O que se evidencia, isto sim, é o anseio da parte que considera-se dominada de ser dominadora ou proprietária das liberdades individuais para deliberar discursos de raças e diferenças unilaterais, incongruentes e totalitaristas (fascistas). Ocultam-se, nesse contexto, o valor real existente no interior de todos os seres humanos, independentemente de que cor sejam. Vislumbra-se, dentro desta atmosfera, que os grupos que almejam a valorização de sua cultura por meio desse falso “discricionarismo” infundado estão, na verdade, produzindo mais discriminação e apartando-se da humanidade em seu percurso evolutivo. Sentiriam-se envergonhados em identificar que, ao tentar restringir as liberdades individuais em detrimento da supremacia cultural ou em contrapartida ao uso deliberado de objetos e instrumentos culturais, perdem, no fundo, aquilo que há de mais sublime em todas as culturas e violam as tradições mais belas que possam existir: o espírito de união, fraternidade e coletividade construtiva e voluntária.

REFERÊNCIAS

* Marx, Karl. O capital. Livro I. Civilização brasileira, 2002.

** Engels, Friedrich. Dialética da natureza. Editora Sociales.

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